sábado, 10 de janeiro de 2009

A Dona Helena & a Tieta

A gente grita, protesta e quer que a vida seja diferente, mas na verdade, não faz nada para que isso se realize - não que adiemos, mas prorrogamos.
A gente fica triste e ai, se dá o direito de ir para a balada, beber todas e começar uma rotina social invejável. Invejável, somente por que todos nós têm algum defeito social e sempre quer algo que não está em nossa realidade.
E ai se esquece de viver. Faz do mundo uma vitrine: uma vitrine com coleções de fotos de momentos lindos e perfeitos no bar, na praia, na balada ou em qualquer outro lugar (de preferência lugares famosos), uma vitrine de boa performance geralmente com visual novo, com sorrisos novos, olhores sexies novos, roupas novas, tudo novo... Uma vitrine e só.
Eu sou assim. Até o dia que encontrei a Dona Helena sem a Tieta.

Desde os meus 10 ou 11 anos de idade, eu conheço a Dona Helena.
A Dona Helena é uma das figuras mais interessantes que conheci na minha vida e com certeza, ela será uma personagem que não vou esquecer... É uma senhorazinha de olhos claros profundos e cabelos grisalhos, desde então. Casada com o Seu Ozório, um senhor cheio de histórias e muito admirado entre a molecada. Eles sempre estiveram presentes, sabe os tios da venda de doces da sua rua? Então, são eles. A gente deixava tudo anotado na caderneta e podia sempre pagar por semana, o que facilitava muito.
Eles sempre procuravam novidades para agradar os pequenos fregueses e entretiam a freguesia com as histórias da junvetude. As vezes, nos entediava, mas sempre ouvíamos - atentos ou não. Tinham uma gata, que soube hoje que veio a falecer. Triste. A gata mais linda que já vi na vida, mas não ao acaso. A gata dormia na cama, comia carne de primeira, tomava leitinho morno na cama e os melhores médicos veterinários à disposição. Uma gata com vida de princesa. Tinha a própria mesa, que sempre era explicado por dona Helena. A mesa redonda de mámore, tinham os pés de metal trabalhados e o detalhe que embaixo da mesa, havia um suporte que parecia mais uma mesinha para anõezinhos, sabem? Lá que a gata comia.A boa vida da gata só acabou quando veio a Tieta. Foi a novidade da rua. Uma cachorra de porte médio branco com manchas marrons, vira-lata. Lembro que havia algumas coincidências com o número sete, não me lembro ao certo, mas: sete filhotes, nascidos no dia 07/07 e havia chegado em algum dia 07, mês 07, enfim.Uma cachorra com muita personalidade também. Todos conhecem a Tieta, pois dona Helena sempre a obriga a cumprimentar a todos:- Tieta, dá bom dia ao Sr. Fulano.A Dona Helena sempre foi uma figura polêmica, lendo assim acho que estimulo em você uma sensaçãozinha de dó, mas não é dó que ela transmite, admiração por seu grau de serenidade.

Seu Ozório e Dona Helena sempre nos demonstrou ser um casal que viveram o casamento muito bem - e tenho certeza que foram muito felizes juntos. Não tiveram filhos, mas Tieta sempre supriu muito bem. Quando tinha alguma briga entre os moleques da rua, Seu Ozório ia apartar, sempre bem sucedido, pois pela admiração que todos tinham, os conselhos e palavras sempre foram ordens. Dizem as más línguas que eram doidos, afinal quem dá carne de primeira aos animais? Por que ao invés disso não cuidam de uma criança? Bom, eu acho que um sabe exatamente o que faz bem fazer e, eles faziam isso.Dedicados a igreja também. Já frequentei a igreja e lembro bem, os dois sempre estiveram lá presentes, com tanta serenidade.Tieta entendia russo, afinal Seu Ozório e Dona Helena falavam e até nos ensinavam algumas palavras... (Sinceramente, não sei nada de russo)
Seu Ozório faleceu. Não me lembro a data exatamente, nem o ano, só sei que foi muito triste. Em pensar que nunca mais veria aquela perua com o casal mais feliz e velhinho que eu conhecia.Eles sempre estavam animados, chateados sempre com coisas banais, mas nunca, nunca na vida vi, eles fazendo mal a ninguém.
O que seria da Dona Helena?
Então, Dona Helena passou toda a minha adolescência passeando umas 5 vezes (menos ou mais, não sei precisamente) com Tieta. - Tieta, dê bom dia ao Sr. Fulano.E, enquanto a minha vida não tinha momentos tristes o bastante para me dar o direito de fazer coisas para esquecer de viver, eu ainda parava e conversava com a Dona Helena, que sempre me contada de como andava a família dela (a Tieta e a gata), qual o preço do leite, as novidades com o padre Enivaldo (não me recordo se é esse o nome dele também) sobre um tanto de coisas cotidianas, que me impressionam...Como alguém pode ser tão serena com essas coisas tão simples da vida?
Ai, passou e eu tinha tantas preocupações e uma rotina tão corrida, que não tinha mais tempo de conversar com a Dona Helena. Sempre a encontrava, mas sempre só podia desejar-lhe: bom dia! Bom dia, Tieta!E sempre planejando e querendo mais coisas, sempre atrasada, sempre correndo, e planejando mais... Até hoje.
Encontrei a Dona Helena sem a Tieta, perto do mercado. Tomei um susto.- Dona Helena, cadê a Tieta?- Ah, não posso mais levá-la a todos os lugares não é verdade? Até perguntei ao veterinário do mercado o que ele me recomendaria para os ouvidos da Tieta, a Tieta não anda escutando muito bem...- A Tieta tá precisando de uma companhia canina, não?Perguntei isso não despretenciosamente, acho mesmo que a Dona Helena precisa de uma companhia.- A Tieta anda cansadinha e eu já tenho 83 anos, não quero ter outro animal para viver mais do que eu e ai, morrer na incerteza que cuidarão dele da mesma forma que eu...
E lá passei bons minutos conversando com aquela senhora de olhos tão profundos, com uma racionalidade impressionante.
Eu? Até agora penso, como pode? Onde eu acho também a minha felicidade...